O que é que Bahia tem?

Caracterizada pelas distinções sociais berrantes, preconceito racial não velado, pelo período pós-latifúndio dos coronéis, a Bahia de 1940 desconhece em seu território qualquer vestígio de arte (s) contemporânea e moderna. Adormecida no berço condoreiro de Castro Alves, a cidade da Bahia, como chama o professor, urge por reformas modernizantes (em todos os setores societários), mas não pretende abrir mão da sua tradição provinciana.
A cultura congelada e academizada, fortalecida pelos grandes volumes de capa dura, se viu ameaçada por propostas de “modernenização e modernismo cultural”. A comunicação que permeava os cidadãos baianos, por ser extremamente arcaica e comunitária, prescindia de meios complexos de difusão da informação. Essas características somadas aos valores soteropolitanos, em demasia conservadores, ocasionaram o atraso de 30 anos da entrada do fluxo, em solos baianos, da semana de 1922, ocorrida em São Paulo.
A década de 50 entra perturbando as estruturas conservadoras das elites baianas. O novo reitor da Universidade da Bahia, Edgar Santos, não poupou esforços para, junto a nomes como Milton Santos, Nelson Rossi dentre outros, alavancar a implementação de uma série de setores que revolucionariam o complexo de ensino superior e, principalmente a cidade.
A reinterpretação de signos (antes tabus) da cultura afro-baiana por estrangeiros como Pierre Verger e Carybé; a manutenção da primeira unidade de ensino superior de dança no país e da América Latina pela polonesa Yanka Rudzka; a fundação do clube de cinema de Walter da Silveira, dentre tantos outros produtos da vertiginosa onda de modernização da cidade da Bahia, esta que, sempre procurando abraçar todo e qualquer fóssil de tradição elitista, possui uma incrível capacidade de fagocitar as novidades, as quais na maior parte das vezes circundam os interesses de minoria econômica.
Além dos artistas, como Mario Cravo, Diógenes Rebouças e Calazans Neto, dos intelectuais, dos estudantes de esquerda e da Universidade da Bahia, as mídias insurgentes, que formavam o complexo cultural baiano (jornais, revistas de cultura, rádio, cinema e a incipiente TV) foram também os responsáveis pela modificação da face soteropolitana. O aspecto rural, empurrado cada vez mais para os interiores do estado, começou a fazer parte do passado dum local que se via (e vendia) num presente de próspero cosmopolitismo.
Em 1964, porém, Salvador presenciou o definhamento da sua ebulição modernizante. A ditadura militar, com seus atos repressores e sufocantes, dividiu geograficamente a cidade, deslocando do centro – antigo locus boêmio-cultural – a movimentação comercial, administrativa, noturna e acadêmica para, respectivamente, a região do Iguatemi, Paralela, Orla e “Avenidas de vale”. A reforma universitária de 1969 enfraqueceu as pupilas de Edgar Santos (as escolas de teatro, música, dança e belas artes) tomando delas a autonomia, além de ter transformado a Universidade da Bahia em Federal.
Os moldes da indústria cultural, que a ditadura importou dos EUA para empregar nas terras brasileiras, desestruturaram muitos mecanismos de prosperação do fazer cultural. Os gestores de cultura e jornalistas (antigos e respeitados formadores de opiniões), que, pelo menos na Bahia, tinham acabado de conquistar a sua profissionalização, se viram desolados com seus canudos nas mãos, já que as imposições de mercado podam a criatividade e a oportunidade dos novos contingentes produtor artístico, cultural e de conteúdo.
As cabeças pensantes, os revoltosos contra o sistema vigente, os artistas conscientes, quando não exilados em outras cidades, se encontravam alocados nos frios invernos europeus ou americanos (do norte). Este êxodo baiano acabou por extinguir qualquer esperança restante do brilhantismo retardatário do recém-nascido abortado modernismo baiano.
A estruturação (mega e uniforme) da televisão conseguiu provocar a mais irreversível (ou seria irresistível?) ferida brasileira: outro golpe triunfal das podres ações executadas durante a dominação dos militares nos solos da pátria amada. Com a ascensão da Rede Globo (de televisões, produções, etc.) todas as emissoras locais, as quais “por imposição do ao vivo” tinham uma transmissão de 100% de programação e conteúdo feitos na cidade, se viram subordinadas ao padrão único de espetáculos televisionados, entretenimento e telejornalismo, cuja cartilha era importada diretamente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Estes estados passaram a ser centros de financiamentos, execuções e viabilização dos diversos produtos culturais (além dos industriais e econômicos) que viessem a acontecer no país.
Ainda sob efeito da letargia artístico-comunicacional-cultural e social, a Bahia, de alguma maneira, tenta fabricar novos frutos pão e circo (além da religião/religiosidade e novelas) que possam eternizar a apatia política da cidade mumificada. Muitos acreditam que a eclosão dos movimentos carnavalescos e contestatórios dos negros, como os afoxés e blocos afros, possam significar a nova maquiagem comportamental da Bahia. De fato a solidificação dessas formas de agitação foi de extrema importância para a auto e imagem dos afrodescendentes de Salvador, pois eles começaram a se ver representados e a sua expressão cultural passou a crescer em visibilidade. Eles puderam se deslocar dos guetos para captar a atenção de todos os pobres, ricos, pretos ou “brancos”, turistas e nativos em épocas que datavam, ou não, o período de carnaval.
Acontece que o mercado se apropria de tudo o que é sucedido e acabou por modelar, a sua maneira, a antiga tonalidade de protesto dos blocos afro. Em dez anos, o Olodum, junto ao Pelourinho, virou parte do pacote de turismo, imagem e semelhança dos produtos do recôncavo. A luta política da maioria dos negros oprimidos pela persistente opressão social e racial se viu adormecida e amortizada.
Ainda falando de indústria cultural, atrás do trio elétrico só vai quem tem dinheiro. O carnaval se transformou numa “numa celebração da orgia” a céu aberto, cuja duração vai de janeiro a dezembro (perdurada pelas festas de camisa, micaretas, ensaios e pela privê que ocorre em paralelo às festas de largo) e num motor de solidificação local e nacionalmente da febre da Axé Music.
Este movimento musical conseguiu vender a imagem da Bahia (do recôncavo) para além das fronteiras do Atlântico, revolucionou o consumo da música brasileira-soteropolitana nas rádios (em Salvador 75% do consumo de música é produzido na própria cidade. Quando não em forma de axé, é o pagode, ou, mais recentemente, o arrocha o ritmo mais pedido nas emissoras FM, noite e dia).
A celebrada revolução axezeira traz consigo inúmeras conseqüências negativas às outras baianidades distanciadas da Baía de Todos os Santos. É bom lembrar que todo poder alcançado por este segmento musical se deve, em grande parte, aos holdings carlistas e a consagração excludente de meia dúzia de artistas que reproduzem o já reproduzido e, de certa forma, sustentam e ajudam a vendagem da imagem institucional do estado (produzida pela Bahiatursa) e do político pfl(ista).
Dentro deste negativismo se esconde milhares de pessoas famintas que (sub)vivem paralelamente aos camarotes e trios elétricos, à Bahia hospitaleira. Também residem dúvidas em relação à persistência desse sistema que apenas beneficia as poucas e mesmas pessoas, que perpetua (há quarenta anos) o efeito anestésico da atuação ditatorial no país e, sobretudo na cidade, que paralisa, ignora e marginaliza seu povo. Sim, a Bahia mais do que necessita, e com urgência, duma ressignificação estrutural e horizontal, a qual arrancasse de uma vez por todas o provincianismo das terras que geriram os Gilbertos, Caymmis, Caetanos e Glaubers, para que assim, os próximos Joãos pertençam e permaneçam no seu berço com suporte dum público que se nivele para além do medíocre.

Por Emilly Dias

Pintura de Carybé