A
marquesa tomou seu chá às cinco horas. Depois, como de hábito, colocou a
xícara sobre a mesa e ficou olhando pela janela. Pela janela a marquesa
não via muita coisa: o cimento do viaduto invadindo o bloco de
edifícios no lado oposto da rua cobria quase toda a visão. Restavam
pequenas frestas entre as paredes de cimento, cinco ou dez centímetros
de rio, mas tão longe que era impossível sentir seu cheiro, o cheiro
podre do rio.
Por cima a marquesa via o céu, um céu quase sempre
rosado de sujeira, algumas estrelas à noite, poucas, vesgas; por baixo a
rua, os carros que passavam, mas era desinteressante ver carros
passando e pessoas tão pequenas que a marquesa não podia desvendar seus
rostos, atribuir-lhes passados, desgraças e futuros, como antigamente. A
marquesa gostava de pessoas? Achava que sim, quando estava sozinha
achava ardentemente que sim, mesmo aquelas do bloco de edifícios na
calçada oposta, que espiavam a sua vida por entre as frestas das
persianas, como se ela andasse sempre nua. A marquesa também espiava a
vida das pessoas do outro lado, mas espiava sem curiosidade de ver, um
que outro rapaz saindo do banho, cabeça molhada, um homem beijando uma
mulher, nunca ninguém se masturbando ou fazendo amor ou injetando algo
na veia ou tentando o suicídio com navalha. Então a marquesa olhava
desinteressada, procurava um resto de chá no fundo do bule ou se perdia
em pequenas ações, como acender outro cigarro ou escovar cem vezes os
cabelos ou lixar cuidadosamente as unhas. Depois, ou mesmo durante, mas
nunca antes: a marquesa pensava na espuma dos rios.
Imaginava-a
roxa. No máximo verde. Ou roxa e verde ao mesmo tempo. (Roxos tinham
sido os panos cobrindo estátuas na Semana Santa; verde era o podre
avançando nos cadáveres.) Roxa, verde, a espuma crescia sobre os rios,
depois o vento soprava montoando-a em grandes blocos que levava pelas
ruas. A espuma chocava-se contra portas fechadas, depositava-se sobre
vidraças, a madeira e o cimento, corroía-os lentamente. A espuma
avançava enquanto as pessoas buscavam o fundo de suas próprias casas,
até ficarem encurraladas contra a última parede. Então a espuma tocava
macia suas peles, aos poucos roía em roxo e verde a carne, os músculos,
os próprios ossos. E nada restava daquelas pessoas. Nem mesmo poeira que
o vento soprasse.
Quando chegava nesse ponto, os músculos das
espáduas da marquesa se enrijeciam — e pensava então no seu passeio
pelas ruas, sábado à tarde, que seu repertório não era muito. Mas pensar
no passeio levava-a à Cidade Baixa, e, na esquina de uma das ruas da
Cidade Baixa, à farmácia. E na farmácia (a marquesa caminhava devagar na
rua. Havia poucos automóveis. Aos sábados era fácil atravessar as ruas
sem olhar muito para os lados nem sentir dor nos ouvidos. A marquesa
caminhava descuidada. Às vezes chegava a comprar flores e até mesmo uma
maçã, a mais vermelha que conseguisse encontrar. E ia assim, as flores
apertadas junto ao peito, esfregando a maçã contra o vestido,
lentamente, porque alguém lhe dissera que as maçãs — não somente as
maçãs, mas também as goiabas, as pêras e os pêssegos, mas deixara de
comprar pêssegos desde que soubera do veneno por trás da casca veludosa —
mas enfim, embora, as maçãs, as frutas: alguém dissera que só gostavam
de ser comidas assim, num ritual. A marquesa caminhava. Prepararia o
ritual ao chegar em casa, colocando as flores no vaso de louça,
acendendo velas e dizendo sorridente à maçã: "Um dia meu corpo servirá
de adubo para muitas macieiras crescerem". A marquesa. Tão distraída
vinha que não chegava a perceber quando começava a acontecer a cena da
farmácia. Assim: quando tomava consciência de si e do que a cercava, já
estava dentro do que acontecia. E o que acontecia, dentro da
farmácia)... era um homem com uma arma na mão e um crioulo forte,
vestido de branco. Percebia mais o crioulo como uma mancha escura dentro
de outra mancha, clara. Rapidamente: aquelas manchas escura e clara que
eram o crioulo recuavam, móveis, enquanto o homem apontava a arma e
disparava. O crioulo caía primeiro para trás, contra uma prateleira de
remédios, depois ele e os remédios caíam juntos sobre o balcão e de
algum lugar entre aquelas manchas nascia uma outra, vermelha, que
escorria em direção aos pés da marquesa enquanto muita gente corria e a
empurrava e gritava muito alto e segurava o homem com a arma que tornava
a disparar e uma coisa quente passava zunindo junto a seus cabelos.
Perdia-se depois entre o barulho das motocicletas, a poeira seca das
ruas e as vibrações coloridas dos televisores atrás das persianas
abaixadas. Um tempo depois, não sabia quanto, de mãos vazias, a marquesa
estava novamente em casa.
A marquesa suspirava, esmagada pelo
difícil de pensar em si mesma sem maçã nem flores, e tornava a olhar
pela janela e ratos. (Eram ratos na rua, no ônibus, na praça, ratos
trocadores correndo de toca em toca com seus objetos presos entre os
dentes arreganhados. A marquesa lembrava: alguém dissera, talvez aquele
mesmo do ritual, que outro alguém colocara alguns casais de ratos a se
reproduzirem num determinado espaço. Depois de algum tempo os ratos
tornavam-se agressivos, entredevoravam-se, enlouqueciam, comiam os
próprios filhos, mantinham relações homossexuais, alguém dissera, os
ratos. E os sagüis.) Era uma vez dois sagüis presos numa gaiola. Até que
um dia um começou a roer a cauda do outro. Então o dono dos sagüis
retirou da gaiola o de cauda semi-devorada e no dia seguinte o sagüi
antropófago tinha começado a devorar a própria cauda. Não sabia como
terminava a história, talvez acabasse aí mesmo com reticências. Mas a
marquesa não conseguia segurar o pensamento, e em breve tinha dentro da
sala uma gaiola com os ossos de um sagüi devorado por si mesmo. Talvez
restassem os olhos, arriscava, fosforescência, dentes saciados, um
pequeno estômago repleto de si mesmo.
A marquesa fascinava-se de
horror e ia até a quitinete encher o bule para fazer mais chá. Mas a
água sempre acabava nas torneiras e ela precisava sair à rua para buscar
água mineral, chegava a colocar a chave no bolso e os dedos no trinco
da porta. Quando os dedos se fechavam em torno do trinco para iniciar o
movimento de baixá-lo, a marquesa pensava rapidamente, e por ordem: 1)
na espuma; 2) na farmácia; 3) nos ratos; 4) nos sagüis. E recuava, a
marquesa ia recuando contra a janela de vidro. Poderia imaginar também
bolhas ou ratos escorregando por baixo da porta, mas preferia sentar na
cadeira junto à janela e comprimir o rosto contra o vidro, olhando para
além da grade. Mas fora, fora só havia caixas e caixas de cimento, latas
transbordantes de lixo, automóveis zunindo, espuma sobre os rios, tiros
nas farmácias, sagüis entredevorados. Bebericava com nojo dois dedos de
água. açucarada e fria no fundo da xícara. A xícara bonita, com alguns
pastores e florezinhas azuis — admirava sem emoção, indicador e polegar
segurando firmes a asa, dedo mínimo suspenso no ar. "Se eu fosse uma
personagem de romance antigo", pensava, "agora jogaria a xícara, ou
melhor, a taça ao chão." O autor certamente saberia tirar algum efeito:
a) dos cacos espalhados pelo assoalho, talvez um último raio de sol
brincando na coroa de flores da pastora; b) ou então faria com que
ela olhasse fixamente para um quadro na parede: em algum lugar, numa
praia deserta e distante, uma onda batia forte contra um rochedo,
espalhando espuma em todas as direções; c) ou faria com que o marquês,
devia haver um marquês qualquer naquela ou nesta história, entrasse de
repente para possuí-la sobre tapetes persas, jogando as inúmeras saias
sobre a baixela de prata; d) ou que enchesse sôfrega a seringa,
procurando a veia, enquanto um rock tocasse na vitrola; e) ou apenas
gritasse muito alto, durante muito tempo, até ficar rouca e muda, sem
ninguém ouvir. Qualquer coisa, a marquesa pediu, encolhendo-se contra a
última parede da gaiola, qualquer coisa aqui, agora — antes do ponto
final.
Conto retirado do Blog:
http://semamorsoaloucura.blogspot.com.br/2007/05/divagaes-de-uma-marquesa.html
Imagem 1: Tarsila do Amaral "São Paulo (GAZO)" 1924
Imagem 2: Tarsila do Amaral "A Boneca" 1928
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