Um épico, segundo Carl Theodor Dreyer.
O gênero cinematográfico comumente conhecido por ‘épico’ é o responsável pela representação objetiva da antologia e vida de heróis ou de um povo, em um determinado período histórico. Uma jovem heroína, em 1420, foi submetida a um claustro, julgamento e posterior execução na fogueira. Esta é uma parte da ‘real’ história (que, devido ao longo tempo dos acontecimentos, se preencheu, naturalmente, de mitos) de Joana d’Arc representada numa obra prima de 88 minutos, repleta de poéticas imagens em movimento e progressão que marcaram a história do cinema.
Carl Theodor Dreyer, diretor de “Le passion de Jeanne d’Arc” fez escolhas subversivas para a representação da história da “Pucelle d’Orleans”, a padroeira da França. Suas preferências foram focadas na construção de uma narrativa que explorasse a história de Joana d’Arc segundo a universalidade do sentimento da Paixão. A partir daí, percebe-se os indícios de revolução do gênero épico, uma vez que a subjetividade do diretor será ressaltada para contar um fato baseado em documentos e registros, mas preponderante, baseado no ardor e sensibilidade do onisciente narrador da história – o qual imprimiu os últimos meses de vida da legendária Joana, com fé e paixão tão grandes que o martírio parecia ser também seu.
Deslocando a atenção do espectador que geralmente é fragmentada nas grandes paisagens, enormes produções e na numerosa quantidade de figurantes e detalhes cenográficos, o diretor irá “reler” o monólogo teatral transfigurando-o em close-ups. Isto porque ele queria registrar essencialmente o desespero, o sofrimento, amor e fé da menina Joana, reencarnada por Renée Maria Falconetti. Segundo o teórico húngaro Bela Balázs, os olhos e as expressões faciais são os mais ‘honestos’ transmissores das emoções humanas intrínsecas, mais verdadeiras. Ele acredita ainda que os
“close-ups nos filmes constituem poderoso instrumento de um antropomorfismo visual. Criando um mundo à nossa imagem, os objetos apenas refletem uma expressividade que lhes foi emprestada pelas expressões humanas neles projetadas. Portanto quando o close-up levanta o véu de nossa incapacidade perceptiva e nos mostra a face dos objetos, o que ele nos mostra é o homem. Mas importante do que a fisionomia das coisas foi descobrir a face humana.”[1]
Dreyer optou pelo singelo e sutil – os close-ups – os quais requerem um esforço sobre-humano e totalmente realista de quem atua: o mínimo erro não pode ser disfarçado, velado; ele deve ser refeito inúmeras e exaustivas vezes. Enxugando todo o excesso contido no teatro, os olhos de Joana (confundidos com os de Falconetti) transparecem todos os momentos enfrentados pela virgem na sua prisão e tortura. Sensações que perpassavam do estado de graça ao terror do desespero foram concebidas em cada movimento e tenuidade do rosto de Renée, dispensando o uso de maquiagens, palavras, subtítulos ou qualquer mecanismo cinematográfico.
A anulação do over de artefatos cinematográficos e a economia dos elementos da Mis-en-scène (com exceção da performance, como foi já dito) foram estratégias reforçadoras da sensibilidade e da essência humanas, muito bem salientada por Bela Balázs. Estas táticas foram precisamente estudadas e mais uma vez a escolha do close-up se configura como um subversor da epopéia, esta que requer grandezas de número não de sutilezas. Isto porque, com o plano fechado se tornam prescindíveis detalhes de vestimentas, de cenografia – ou qualquer aspecto do detalhe exterior. O corpo e sentimento do ator acabam por se tornar o set onde a história e as filmagens vivem. Analisando a luz, os objetos de cena, a maquiagem, os efeitos e o figurino que Dreyer empregou no seu filme, entende-se seu fascínio intencional pelo rosto.
A exclusão (quase total) dos objetos de cena e a predominância do branco nas locações – como a sala de interrogatório e o dormitório-sela onde Joana ficava trancada –, além do uso da luz focal (como o holofote, no teatro) formam um conjunto de estratégias que dirigem a atenção TOTAL do espectador à atriz e o seu trabalho impecável. Além do estratégico uso da luz e close-ups, a magnífica fotografia de Rudolf Maté dialoga com a revelação dos sentimentos da mártir. Os contrastes estabelecidos entre a inocência de Joana e a inquisição corruptiva dos clérigos foram bem impressos pelo trabalho de câmera. A cena de abertura, com um travelling lateral revelando a quantidade de monges e homens religiosos reunidos num tribunal malicioso, o uso da plongeé – diminuindo ou suprimindo Joana – e da contra-plongeé – enaltecendo os carrascos, juízes e religiosos naquele que seria o primeiro tribunal da menina, são alguns dos poucos exemplos de como a câmera trabalhou favoravelmente à exuberante atuação e à econômica utilização dos elementos cênicos do cinema.
Não é difícil notar que os poucos objetos e símbolos destacados em primeiro plano assim foram postos para ratificar e comunicar algo aos espectadores, como por exemplo, o gradil da sela de Joana que tinha formato de cruz (foto 1)– maior e mais representativa insígnia da Igreja Católica – ou mesmo a sarcástica coroação (foto 2) que os guardas ingleses executaram na menina, em prantos.
(Foto 1)
(Foto 2)
A ausência não era, porém, restrita aos artefatos, alegorias ou marcas visuais. Por limitações da época, Dreyer optou pelo total e absoluto silêncio para acompanhar a saga de Joana d’Arc. Esta escolha drástica incomodou a muitos, inclusive ao crítico da Cahiers Du Cinéma André Bazin, que acreditava no poder reforçador que o som e ritmo dão ao filme. A omissão dos sons aumentava a aflição daquela que estava em primeiro plano. Nós, os espectadores, assim como Nana em “Vivre sa Vie” (Godard, 1962) [2]repartíamos a angústia e toda dor de Falconetti em supressor silêncio, cortado apenas pelos soluços das testemunhas. Em 1988, todavia, Richard Einhorn criou um coro que era uma mistura de Oratório e Orquestra para embalar todos os momentos que compuseram o martírio de Joana d’Arc. Não sei qual das opções torna a angústia mais embaraçosa e insuportável, mas sem nenhuma dúvida a trilha sonora “Voices of Light” se caracteriza como um grandioso presente para uma obra silenciosamente majestosa.
[1] Roberto Acioli de Oliveira escreve sobre “Bela Balázs e os Close-ups” no Blog Cinema Europeu. Disponível no link
[2] Em 1962, Nana vai ao cinema assistir o filme “Le passion de Jeanne d’Arc”. Em “Vivre sa Vie”, dirigido por Jean-Luc Godard há exatamente o registro do filme de Dreyer como ele havia concebido – com ausência total de sons. Muito me surpreende, porém, a visão dum fragmento do filme de Dreyer em 1962, uma vez que na abertura do longa-metragem em questão, há uma legenda do restaurador salientando as grandes tragédias que envolveram as películas desta obra de 1928 – incêndio e quase perda total do filme. Será que a Cinemateca Francesa conseguiu arquivar algum fragmento do filme “O martírio de Joana d’Arc” antes da sua total restauração na década de 80?
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