Desprezo de Godard.
Godard não é econômico em suas subordinações. Os créditos de abertura do filme, O desprezo (Lé Mepris, 1963), se configuram em uma narrativa de nomes, reprisada na citação de Bazin na Cinecittà em ruínas, sobre o cinema: “a representação do mundo que melhor se adéqua aos desejos mundanos”. Este mundo se proclama imageticamente por um travelling, um boom, uma câmera de 35 mm guiada pelo diretor de fotografia, e desfile desatencioso de uma secretária, este que anuncia as cores presentes de forma sutil, porém contrastante, no longa metragem em Technicolor.
Camille (Brigitte Bardot), após o gozo, permanece deitada numa ingênua exibição dos seus contornos e pergunta a seu marido, Paul, como se sabatinasse também a audiência, uma confirmação do seu amor e desejo repartidos pelos pedaços do seu estonteante corpo de pin up. É desta maneira que é construída a introdução do filme: Brigitte Bardot; um roteiro sob encomenda, Odisseu e Penélope e, por fim, o amor em prosperidade, antes do desprezo.
Na Cinecittà, Paul (Michel Piccoli) se surpreende com o fantasmagórico e gigante complexo de estúdios e teatros, palco de grandes obras cinematográficas italianas. A melancolia do local, com as suas cores lavadas e acinzentadas, que possui as marcas de um império em ruínas, parece uma parte do apelo, uma obrigação, além de econômica, que compelia o Sr. Javal a “ressucitar” o gigante em desmaio, franco declínio. Paul caminha pela Cinecittà, sem olhar para os lados, entra na sala de exibição para saborear a obra de Fritz Lang, que em pessoa, defende a poesia e a distanciação da paranóia na história de Ulisses, suas guerras e conquistas.
É, então, anunciado o começo da trama com seu plot sentimental. Toda Odisséia de Ulisses (ou Odisseu) – da guerra de Tróia, aos entraves de 20 anos que o separaram de casa: corporificados em Ciclopes, Sereias, belas deusas (Calipso) e feiticeiras (Circe), e, por fim o retorno à Pátria e a Penélope – é resumida, na versão de Lang, em teatralizadas ações dos poucos personagens e sintetizada na impositiva pose das estátuas (Atenas e Poseidon), herança grega. O dinheiro da máquina cinematográfica entra como entrave de repulsa a esta representação florida e cheia de filosofia do produto que deveria ser épico (feroz, porque não violente) e com bilheteria garantida. Eis, então, as pinceladas biográficas: o Sr. Godard fora convidado por Carlo Ponti para realizar um filme com maior budget que o diretor teve em mãos. Mastroiani foi recusado como ator principal, que venha a Bardot e seus banhos de Eva sob sol.
Uma triangulação temática: Homero, Cinema versus vida, Camille e Paul. Assim se desenrola a trama, depois da apresentação que Lang faz do seu filme-arte – sua versão da Odisséia. Uma obra sublime, uma arte sutil “que não se opõem à natureza” e ainda carrega em si citações alighierianas e sua divina comédia. A montagem possui um importante papel nestes paralelismos (ou múltiplas estórias), uma vez que, as contraposições de momentos do casal, com a história homérica e a continuidade serena da filmagem dos caminhos de Odisseu em meio à tragédia que intercepta a realidade e ficção, se configuram como um elo que conecta o triângulo dramático.
Os espaços que dividem quadros e momentos do casal, no novo e luxuoso apartamento é o palco da consolidação do desprezo. Os diálogos Godardianos são exemplarmente enquadrados, entre as cômodas da nova casa, as quais possuem adereços e detalhes que contracenam com os personagens. Camille rejeita Paul, a quem amava em retorno “totalmente, ternamente e tragicamente”. Um simples detalhe, que de acordo com as próprias palavras citadas no filme, são correspondentes à trajetória amorosa de Ulisses e Penélope – seriam os vinte anos ambulantes pouco amor ou desamor? Paul, em contramão, é menos audaz e bravo que Ulisses, mas desatenções com a dádiva da fidelidade de Camille, e fáceis concessões da companhia da sua esposa ao manipulador e ditador Prokosh, fazem-na questionar certezas deste amor total. “Teria, então, Odisseu de matar os pretendentes para recuperar o amor de Penélope?”. Esta versão não apareceria no desprezo, de Godard.
Em meio a citações, poesias, filósofos e, principalmente símbolos mitológicos, Godard abre sutis parênteses que aparentam ser um diário onipresente das marcas de sua própria biografia. Bardot, deixando a banheira, se enrola numa toalha vermelho-sangue e assume a postura ou papel de Anna Karina. Aquela peruca e olhos grandes com maquilagem forte parece transfigurar a musa para um momento de crise dum casamento, não de Camille, mas do próprio Godard. Outro personagem que comunica esta biografia narrada em imagens ou que trás citações e resgates de obras anteriores do diretor é a figura de Fritz Lang. Ele, que assume uma postura neutra, porém extremamente forte em suas pregações, trás à mente do espectador o filósofo de “Vivre sa Vie”, a obra em doze “tableaux” que Godard finaliza um ano antes de “Le Mépris (1963)”. Este filósofo fala do amor e da necessidade (desesperada) que nós homens temos dos diálogos, de expressões vazias ou distorcidas da menor coisa que sintamos, ou não. O falar pelo simples prazer de ouvir a nossa própria voz e vaidade.
O que fragmenta e une, assim como na Torre de Babel, são os diferentes idiomas e as contraposições entre espaço, paraíso e claustro de quatro personagens os quais se relacionam, a priori, simplesmente por causa do roteiro. A Ilha de Capri fica em segundo plano, quando enfocados estão os entraves de diálogo do casal em decadência. As escadas da luxuosa casa de Prokosh parecem os estágios do Monte Purgatório, guiando os transeuntes para o paraíso ou Inferno, sendo a sala de vidros uma espécie de tribunal divino e o sênior Fritz Lang, o anjo julgador ou, pelo menos, testemunha do ménage atribulado. O azul e plácido Mar Mediterrâneo é o lar das sereias e a contemplação de Ulisses, que de braços estendidos comemora o retorno à sua Pátria e o fim (parcial) da Odisséia.
Crítica do jornal New York Times:
http://www.nytimes.com/2008/03/09/movies/09raff.html
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