sábado, março 12, 2011

Desprezo de Godard.

Le Mépris, Contempt, O Desprezo – 1963. Um filme ítalo-francês de Jean-Luc Godard.


Godard não é econômico em suas subordinações. Os créditos de abertura do filme, O desprezo (Lé Mepris, 1963), se configuram em uma narrativa de nomes, reprisada na citação de Bazin na Cinecittà em ruínas, sobre o cinema: “a representação do mundo que melhor se adéqua aos desejos mundanos”. Este mundo se proclama imageticamente por um travelling, um boom, uma câmera de 35 mm guiada pelo diretor de fotografia, e desfile desatencioso de uma secretária, este que anuncia as cores presentes de forma sutil, porém contrastante, no longa metragem em Technicolor.

Camille (Brigitte Bardot), após o gozo, permanece deitada numa ingênua exibição dos seus contornos e pergunta a seu marido, Paul, como se sabatinasse também a audiência, uma confirmação do seu amor e desejo repartidos pelos pedaços do seu estonteante corpo de pin up. É desta maneira que é construída a introdução do filme: Brigitte Bardot; um roteiro sob encomenda, Odisseu e Penélope e, por fim, o amor em prosperidade, antes do desprezo.

Na Cinecittà, Paul (Michel Piccoli) se surpreende com o fantasmagórico e gigante complexo de estúdios e teatros, palco de grandes obras cinematográficas italianas. A melancolia do local, com as suas cores lavadas e acinzentadas, que possui as marcas de um império em ruínas, parece uma parte do apelo, uma obrigação, além de econômica, que compelia o Sr. Javal a “ressucitar” o gigante em desmaio, franco declínio. Paul caminha pela Cinecittà, sem olhar para os lados, entra na sala de exibição para saborear a obra de Fritz Lang, que em pessoa, defende a poesia e a distanciação da paranóia na história de Ulisses, suas guerras e conquistas.

É, então, anunciado o começo da trama com seu plot sentimental. Toda Odisséia de Ulisses (ou Odisseu) – da guerra de Tróia, aos entraves de 20 anos que o separaram de casa: corporificados em Ciclopes, Sereias, belas deusas (Calipso) e feiticeiras (Circe), e, por fim o retorno à Pátria e a Penélope – é resumida, na versão de Lang, em teatralizadas ações dos poucos personagens e sintetizada na impositiva pose das estátuas (Atenas e Poseidon), herança grega. O dinheiro da máquina cinematográfica entra como entrave de repulsa a esta representação florida e cheia de filosofia do produto que deveria ser épico (feroz, porque não violente) e com bilheteria garantida. Eis, então, as pinceladas biográficas: o Sr. Godard fora convidado por Carlo Ponti para realizar um filme com maior budget que o diretor teve em mãos. Mastroiani foi recusado como ator principal, que venha a Bardot e seus banhos de Eva sob sol.

Uma triangulação temática: Homero, Cinema versus vida, Camille e Paul. Assim se desenrola a trama, depois da apresentação que Lang faz do seu filme-arte – sua versão da Odisséia. Uma obra sublime, uma arte sutil “que não se opõem à natureza” e ainda carrega em si citações alighierianas e sua divina comédia. A montagem possui um importante papel nestes paralelismos (ou múltiplas estórias), uma vez que, as contraposições de momentos do casal, com a história homérica e a continuidade serena da filmagem dos caminhos de Odisseu em meio à tragédia que intercepta a realidade e ficção, se configuram como um elo que conecta o triângulo dramático.

Os espaços que dividem quadros e momentos do casal, no novo e luxuoso apartamento é o palco da consolidação do desprezo. Os diálogos Godardianos são exemplarmente enquadrados, entre as cômodas da nova casa, as quais possuem adereços e detalhes que contracenam com os personagens. Camille rejeita Paul, a quem amava em retorno “totalmente, ternamente e tragicamente”. Um simples detalhe, que de acordo com as próprias palavras citadas no filme, são correspondentes à trajetória amorosa de Ulisses e Penélope – seriam os vinte anos ambulantes pouco amor ou desamor? Paul, em contramão, é menos audaz e bravo que Ulisses, mas desatenções com a dádiva da fidelidade de Camille, e fáceis concessões da companhia da sua esposa ao manipulador e ditador Prokosh, fazem-na questionar certezas deste amor total. “Teria, então, Odisseu de matar os pretendentes para recuperar o amor de Penélope?”. Esta versão não apareceria no desprezo, de Godard.

Em meio a citações, poesias, filósofos e, principalmente símbolos mitológicos, Godard abre sutis parênteses que aparentam ser um diário onipresente das marcas de sua própria biografia. Bardot, deixando a banheira, se enrola numa toalha vermelho-sangue e assume a postura ou papel de Anna Karina. Aquela peruca e olhos grandes com maquilagem forte parece transfigurar a musa para um momento de crise dum casamento, não de Camille, mas do próprio Godard. Outro personagem que comunica esta biografia narrada em imagens ou que trás citações e resgates de obras anteriores do diretor é a figura de Fritz Lang. Ele, que assume uma postura neutra, porém extremamente forte em suas pregações, trás à mente do espectador o filósofo de “Vivre sa Vie”, a obra em doze “tableaux” que Godard finaliza um ano antes de “Le Mépris (1963)”. Este filósofo fala do amor e da necessidade (desesperada) que nós homens temos dos diálogos, de expressões vazias ou distorcidas da menor coisa que sintamos, ou não. O falar pelo simples prazer de ouvir a nossa própria voz e vaidade.

O que fragmenta e une, assim como na Torre de Babel, são os diferentes idiomas e as contraposições entre espaço, paraíso e claustro de quatro personagens os quais se relacionam, a priori, simplesmente por causa do roteiro. A Ilha de Capri fica em segundo plano, quando enfocados estão os entraves de diálogo do casal em decadência. As escadas da luxuosa casa de Prokosh parecem os estágios do Monte Purgatório, guiando os transeuntes para o paraíso ou Inferno, sendo a sala de vidros uma espécie de tribunal divino e o sênior Fritz Lang, o anjo julgador ou, pelo menos, testemunha do ménage atribulado. O azul e plácido Mar Mediterrâneo é o lar das sereias e a contemplação de Ulisses, que de braços estendidos comemora o retorno à sua Pátria e o fim (parcial) da Odisséia.


Crítica do jornal New York Times
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http://www.nytimes.com/2008/03/09/movies/09raff.html


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O terror imagético de Hitchcock


Alfred Hitchcock é um guru cinematográfico. Cresceu profissionalmente trabalhando com grandiosos diretores, como F. W. Murnau e sua cabeça, desde criança, sempre fora tomada pela literatura. Seu perfeccionismo é facilmente diagnosticado nas suas películas, cujas cenas eram ampla e exaustivamente estudadas e testadas (através de story boards, ensaios e retakes) até que tudo ficasse imageticamente e hitchcockianamente comunicável, apreciável e impressionante. Testar técnicas, causar dúvidas, pânico e intriga no público era seu hobby e dever favoritos.

Este diretor não é apenas um criador, mas um homem de suma importância, o qual fora aclamado por cineastas franceses da Nouvelle Vague (daí o nascimento de um dos debates mais famosos sobre e do cinema, que primeiro fora publicado no Cahiers du Cinéma para, em 1967, se tornar um livro de entrevistas “Hitchcock/Truffaut: Entrevistas”,) e que, há mais de 60 anos, tem as suas obras consideradas como referenciais para a linguagem cinematográfica e, também por este motivo são largamente reproduzidas por novos realizadores dos mais diversos gêneros fílmicos. Partindo desta breve apresentação, tenho à frente como tarefa aterrorizante discorrer sobre uma das suas maiores obras primas.

Mais que um desafio, falar sobre Psicose (Psycho, EUA, 1960) é uma peregrinação na teoria, no cinema e nos quilômetros de textos, artigos e opiniões que foram criados e versados sobre este filme no longo dos seus 49 anos de existência. Não é por acaso que Psycho é considerado um dos maiores thrillers de toda história do cinematógrafo, já que ele foi o mais copiado e seus símbolos são referências que perduram nos vários filmes do gênero ao longo dos anos. Quantos lançamentos e longa-metragem terminados depois de 1960 tiveram faca com arma mortífera e quantas são as repetidas cenas de mocinhas distraídas tomando seu sexy banho que tem, depois de observados, seus contornos friamente esfaqueados, sendo assim assassinada?

Neste filme, feito com um dos menores orçamentos já utilizados pelo diretor, Hitchcock ousou em experimentações. Ele estava decidido a construir e instaurar o horror, medo e aflição na cabeça do espectador, eliminando excessos de violência na tela. Para isso, o diretor faz uso de mecanismos que envolvem desde a divulgação do seu longa-metragem, à fotografia, da música à montagem. Estas técnicas foram sabiamente utilizadas para criar a tensão. Como estratégia de marketing e uma maneira de prender os espectadores a todos os detalhes da trama, posters com Hitchcock anunciavam o filme, proibindo os espectadores que entrassem na seção depois que ela já estivesse começado. Esta estratégia foi pensada já que ele queria que a platéia se intrigasse com aquela personagem principal (Janet Leigh), uma secretária comum, com aflições comuns, mas que cometeria um grave delito. Prestes a se desfazer do erro, facadas lhe tiram os sentidos e o arrependimento... Isto significa dizer que, antes de criar amor ou ódio pela personagem, em menos de 50 minutos ela foi abrupta e inesperadamente extinta das telonas, sem escatologias.

O sangue e as vísceras foram trocados pelos mecanismos fílmicos de contar a história imageticamente. A montagem da cena que é a mais importante do filme (Marion Crane sendo morta a facadas na banheira) é complexa e, apesar de extremamente clipada, misteriosa. Em 45 segundos de filme, que são compreendidos entre o voyeurismo de Norman Bates (Anthony Perkins) e a execução de Marion (Janet Leigh), o diretor utilizou mais de 70 posições de câmeras diferentes, 70 maneiras de ver a senhorita Crane, seu sangue descendo pelo ralo e seu olho morto. Além disso, a fotografia a qual se expressa através de close ups, plongées e desfoques reforçavam a tensão que é ritmada pela obra musical de Bernard Herrmann.

Outra assinatura de Hitchcock que fora grande responsável pela imortalização deste masterpiece foi o seu trabalho de câmera com enquadramentos econômicos, mas expressivos. Em entrevista a Truffaut, o cineasta afirma que ele utiliza a “fabricação de imagens” a seu favor para que consiga expressar o máximo de realismo para os espectadores, sem necessariamente “sujar suas mãos com isso”. Este é o fatídico caso da cena em que Norman encontra a moça morta em seu banheiro. O que Hitchcock dá ao espectador? O mínimo: manchas de sangue e um corpo caído (do qual só os pés são enquadrados). O resto da cena a própria platéia está imbuída de preencher, na sua cabeça ou pesadelos.

Um épico, segundo Carl Theodor Dreyer.


O gênero cinematográfico comumente conhecido por ‘épico’ é o responsável pela representação objetiva da antologia e vida de heróis ou de um povo, em um determinado período histórico. Uma jovem heroína, em 1420, foi submetida a um claustro, julgamento e posterior execução na fogueira. Esta é uma parte da ‘real’ história (que, devido ao longo tempo dos acontecimentos, se preencheu, naturalmente, de mitos) de Joana d’Arc representada numa obra prima de 88 minutos, repleta de poéticas imagens em movimento e progressão que marcaram a história do cinema.

Carl Theodor Dreyer, diretor de “Le passion de Jeanne dArc” fez escolhas subversivas para a representação da história da “Pucelle d’Orleans”, a padroeira da França. Suas preferências foram focadas na construção de uma narrativa que explorasse a história de Joana d’Arc segundo a universalidade do sentimento da Paixão. A partir daí, percebe-se os indícios de revolução do gênero épico, uma vez que a subjetividade do diretor será ressaltada para contar um fato baseado em documentos e registros, mas preponderante, baseado no ardor e sensibilidade do onisciente narrador da história – o qual imprimiu os últimos meses de vida da legendária Joana, com fé e paixão tão grandes que o martírio parecia ser também seu.

Deslocando a atenção do espectador que geralmente é fragmentada nas grandes paisagens, enormes produções e na numerosa quantidade de figurantes e detalhes cenográficos, o diretor irá “reler” o monólogo teatral transfigurando-o em close-ups. Isto porque ele queria registrar essencialmente o desespero, o sofrimento, amor e fé da menina Joana, reencarnada por Renée Maria Falconetti. Segundo o teórico húngaro Bela Balázs, os olhos e as expressões faciais são os mais ‘honestos’ transmissores das emoções humanas intrínsecas, mais verdadeiras. Ele acredita ainda que os

close-ups nos filmes constituem poderoso instrumento de um antropomorfismo visual. Criando um mundo à nossa imagem, os objetos apenas refletem uma expressividade que lhes foi emprestada pelas expressões humanas neles projetadas. Portanto quando o close-up levanta o véu de nossa incapacidade perceptiva e nos mostra a face dos objetos, o que ele nos mostra é o homem. Mas importante do que a fisionomia das coisas foi descobrir a face humana.”[1]

Dreyer optou pelo singelo e sutil – os close-ups – os quais requerem um esforço sobre-humano e totalmente realista de quem atua: o mínimo erro não pode ser disfarçado, velado; ele deve ser refeito inúmeras e exaustivas vezes. Enxugando todo o excesso contido no teatro, os olhos de Joana (confundidos com os de Falconetti) transparecem todos os momentos enfrentados pela virgem na sua prisão e tortura. Sensações que perpassavam do estado de graça ao terror do desespero foram concebidas em cada movimento e tenuidade do rosto de Renée, dispensando o uso de maquiagens, palavras, subtítulos ou qualquer mecanismo cinematográfico.

A anulação do over de artefatos cinematográficos e a economia dos elementos da Mis-en-scène (com exceção da performance, como foi já dito) foram estratégias reforçadoras da sensibilidade e da essência humanas, muito bem salientada por Bela Balázs. Estas táticas foram precisamente estudadas e mais uma vez a escolha do close-up se configura como um subversor da epopéia, esta que requer grandezas de número não de sutilezas. Isto porque, com o plano fechado se tornam prescindíveis detalhes de vestimentas, de cenografia – ou qualquer aspecto do detalhe exterior. O corpo e sentimento do ator acabam por se tornar o set onde a história e as filmagens vivem. Analisando a luz, os objetos de cena, a maquiagem, os efeitos e o figurino que Dreyer empregou no seu filme, entende-se seu fascínio intencional pelo rosto.

A exclusão (quase total) dos objetos de cena e a predominância do branco nas locações – como a sala de interrogatório e o dormitório-sela onde Joana ficava trancada –, além do uso da luz focal (como o holofote, no teatro) formam um conjunto de estratégias que dirigem a atenção TOTAL do espectador à atriz e o seu trabalho impecável. Além do estratégico uso da luz e close-ups, a magnífica fotografia de Rudolf Maté dialoga com a revelação dos sentimentos da mártir. Os contrastes estabelecidos entre a inocência de Joana e a inquisição corruptiva dos clérigos foram bem impressos pelo trabalho de câmera. A cena de abertura, com um travelling lateral revelando a quantidade de monges e homens religiosos reunidos num tribunal malicioso, o uso da plongeé – diminuindo ou suprimindo Joana – e da contra-plongeé – enaltecendo os carrascos, juízes e religiosos naquele que seria o primeiro tribunal da menina, são alguns dos poucos exemplos de como a câmera trabalhou favoravelmente à exuberante atuação e à econômica utilização dos elementos cênicos do cinema.

Não é difícil notar que os poucos objetos e símbolos destacados em primeiro plano assim foram postos para ratificar e comunicar algo aos espectadores, como por exemplo, o gradil da sela de Joana que tinha formato de cruz (foto 1)– maior e mais representativa insígnia da Igreja Católica – ou mesmo a sarcástica coroação (foto 2) que os guardas ingleses executaram na menina, em prantos.

(Foto 1)

(Foto 2)


A ausência não era, porém, restrita aos artefatos, alegorias ou marcas visuais. Por limitações da época, Dreyer optou pelo total e absoluto silêncio para acompanhar a saga de Joana d’Arc. Esta escolha drástica incomodou a muitos, inclusive ao crítico da Cahiers Du Cinéma André Bazin, que acreditava no poder reforçador que o som e ritmo dão ao filme. A omissão dos sons aumentava a aflição daquela que estava em primeiro plano. Nós, os espectadores, assim como Nana em “Vivre sa Vie” (Godard, 1962) [2]repartíamos a angústia e toda dor de Falconetti em supressor silêncio, cortado apenas pelos soluços das testemunhas. Em 1988, todavia, Richard Einhorn criou um coro que era uma mistura de Oratório e Orquestra para embalar todos os momentos que compuseram o martírio de Joana d’Arc. Não sei qual das opções torna a angústia mais embaraçosa e insuportável, mas sem nenhuma dúvida a trilha sonora “Voices of Light” se caracteriza como um grandioso presente para uma obra silenciosamente majestosa.


[1] Roberto Acioli de Oliveira escreve sobre “Bela Balázs e os Close-ups” no Blog Cinema Europeu. Disponível no link .

[2] Em 1962, Nana vai ao cinema assistir o filme “Le passion de Jeanne d’Arc”. Em “Vivre sa Vie”, dirigido por Jean-Luc Godard há exatamente o registro do filme de Dreyer como ele havia concebido – com ausência total de sons. Muito me surpreende, porém, a visão dum fragmento do filme de Dreyer em 1962, uma vez que na abertura do longa-metragem em questão, há uma legenda do restaurador salientando as grandes tragédias que envolveram as películas desta obra de 1928 – incêndio e quase perda total do filme. Será que a Cinemateca Francesa conseguiu arquivar algum fragmento do filme “O martírio de Joana d’Arc” antes da sua total restauração na década de 80?