domingo, outubro 22, 2006

Samuel Fuller, in some words

“Fuller adorava as sombras do filme ‘noir’, a selvageria do Oeste, o caos da batalha”, escreveu Rus Thompson.

Samuel Fuller desde cedo viveu num ambiente cercado de almas inóspitas. Aos 17 anos ele foi repórter policial, no “San Diego Sun”, o que permitiu a ele a coleção de “materiais” para a sua futura carreira como diretor de cinema. Trabalhando nas coberturas dos mais absurdos acontecimentos, como repórter, Samuel teve contato com vários tipos de marginais sociais. Bandidos, assassinos, corruptos, estes eram o objeto de estudo do garoto Fuller. Sua inserção primordial no mundo cinematográfico se deu quando, na década de 30, ele começou a colaborar com diversos roteiros de filmes B. Temporariamente ele teve de se afastar das câmeras e máquinas de escrever para servir na Segunda Guerra mundial, pela Primeira Divisão de Infantaria, onde lutou no Norte da África e na Europa. Mais uma vez a iniqüidade faz parte do cotidiano de Samuel. As mais diversas formas de “matar ou morrer”, discriminação e humilhação foram vivenciadas por ele na época em que serviu o exército Norte Americano. Como um soldado com muitas condecorações, Fuller agora também estava munido de conhecimentos sobre campos de batalha, guerra e violência (muitas vezes gratuitas) temas que futuramente se tornariam a chave para muito dos seus filmes. O primeiro filme dirigido por Fuller foi I Shot Jesse James, em 1949. A partir daí sua contribuição para o cinema foi crescente e intensa. Fuller começava a criar a sua linguagem e estética cinematográfica, aparecendo, durante as décadas de 50 e 60, época em que dirigiu 17 filmes, como um dos promissores cineastas da era pós-guerra nos EUA. Ele iniciava – bem no epicentro da época clássica – a abordar temas sociais antes ignorados pelos diversos diretores, seus contemporâneos. Ele nunca fez parte de nenhum movimento ou gueto no espaço fílmico, pois se via compromissado com a denúncia, com a ação. Era um outsider. Ousou na criação de filmes com características modernas, os quais abordavam profundamente temas dos becos escuros da tão ‘harmoniosa’ América. Fazia uso da atmosfera Noir, das luzes expressionistas para denunciar o choro dos excluídos. Fuller não era adepto ao maniqueísmo estadosunidense, por este motivo, nos seus trabalhos esforços não foram poupados para desconstruir o protótipo dos mocinhos e vilões. Pode-se dizer que o diretor pincelava o arquétipo dos anti-heróis. Os personagens principais dos seus filmes (os antigos “mocinhos”) eram homens e mulheres comuns, cheios de defeitos e desvios de personalidade, eram ladrões, soldados, prostitutas e pedófilos. Uma qualidade intrínseca a Fuller, que pode ser considerado como um presente dele ao cinema, era a habilidade de tecer uma linguagem quase documental, com uma narrativa direta e sem floreio de adjetivos, além de criar diálogos objetivos, porém cheios de carga política e insinuações acerca da concreta realidade. O cenário, o ambiente e as figuras dramáticas de Samuel eram caracterizados por uma desordem na essência, muita contradição, mistério e sombras. Esse conjunto de atributos chocava a sociedade e críticos da época, o que ocasionou na pouca distribuição dos seus filmes na ocasião em que eram lançados, pois nenhum distribuidor se arriscaria a pôr a abordagem Fulleriana do real nas telonas. Em suma, Samuel Fuller (segundo meu ponto de vista) significa para o cinema a queda das máscaras, falando visceralmente da conjuntura real da sociedade na qual ele era inserido. Nele existia a - quase - perfeição da técnica de realizar filmes, equilibrando a luz, os contrastes e a fotografia num tripé invejável. Os atores reafirmavam a veracidade de Samuel, dando aos seus personagens mais vida do que as geniais palavras encaixadas no script, o suposto responsável pela existência dos personagens. Enfim, Fuller significava a voz que precisava emergir para ser ouvida e compreendida, motivo pelo qual ele foi a razão do medo e do forçado esquecimento por parte dos cidadãos do seu país.
Emilly Dias

Shock Corridor


Os temas que se fazem presentes em Paixões que Alucinam são inúmeros e complexos. Porém Samuel Fuller pôs nos quatro personagens centrais (sendo um deles, Johnny Barrett, o principal) a incumbência de representar os quatro mais influentes problemas da película, em consonância com os da sociedade norte americana da década de 60.
Esta época é marcada por transformações em todos os seguimentos dos EUA e do mundo. A literatura é expressa através dos Beatnicks que desejam arrasar o modelo burguês do “american way of life”, os modernistas desestruturavam a forma perfeita da arte, a música começa a ganhar transformadores (a invasão britânica penetra no mercado fonográfico bastante fechado dos EUA), há a independência tardia de diversos países africanos, os Panteras Negras clamam o pelo Black Power, Martin Luther King luta contra a segregação racial no seu país, tentando dar dignidade à identidade negra, a Guerra no Vietnã matava milhares de jovens americanos e vietnamitas, ocorre a construção do muro de Berlim, também toma corpo a Crise dos Mísseis em Cuba (ela que foi a iminência de uma guerra nuclear), John F. Kennedy é assassinado na sua campanha pela re-eleição, vários países da América Latina ficam sob influência, ocasionada pelos golpes que deram origem às Ditaduras, dos militares, enfim, os EUA e a URSS matam a sua própria paz e a do restante do mundo durante o longo período de Guerra Fria.
Presenciando a ocorrência de todos esses acontecimentos não havia lógica ou razão para Fuller falar sobre mocinhos, princesas e sonhos inexistentes. Em Shock Corridor todo esse fascínio destrutivo e toda a atmosfera do medo foram trazidos para um corredor, ou ironicamente chamada de ‘Rua’, situado num hospício. Quem é o verdadeiro louco?
Dividido em três pilares centrais e um principal, Samuel fala da Guerra Fria, que acarretou a corrida armamentista e nuclear; fala do Racismo, representado pelo isolamento e pela marginalidade social que os ‘cidadãos’ brancos designaram aos negros e, principalmente pelo Ku Klux Klan(KKK); fala também das guerras, num âmbito geral, abordando o horror contido em qualquer guerra, de qualquer dimensão; e, fundamentalmente, sobre a obsessão e desejo exacerbados por fama e reconhecimento:
“Whom God Wishes To Destroy... He First Turns Mad”.
Encarnada em Stuart (James Best), a problemática comum a todas as guerras (em destaque a Guerra Civil norte americana, a Guerra da Coréia e a IIGM) é retratada metaforicamente no filme. Toda exacerbação do ódio, toda a brutalidade com precedentes falidos e tantas vidas roubadas foram situações agrupadas em um homem fragilizado pela intolerância e a incapacidade da razão. Fazendeiro, católico e procedente do sul dos EUA, Stuart fugiu de casa em busca de um ideal, um sentido para os seus dias (arrisco a dizer que esta ocorrência era comum aos jovens do país, uma vez que eram todos desprovidos de futuro e viviam um presente recheado de ignorância e vazio, quadro que perdura até datas atuais). Encontrou o comunismo, a luta, um norte. Até o dia em que ficou na delegação de fazer uma lavagem cerebral no “ingênuo”, um sargento da primeira divisão (suponho que Fuller esteja fazendo uma auto-homenagem) chamado Callowed (acredito, também, que o diretor, na passagem acima descrita dê uma leve pincelada – muito sutil – no amor homossexual entre homens do exército, prática comum num ambiente em que não se ver mulheres por extensos períodos). Ele desiste da bandeira vermelha e volta à América, repudiado por todos, notadamente pelos seus próprios familiares.
Sob a representação do genial cientista, Dr. Boden (Gene Evans), ganhador do Nobel de Física pela colaboração do desenvolvimento da bomba atômica e da bomba H, existe a discussão sobre a Guerra Fria e seus efeitos, mais que colaterais, na esfera global. Fuller dá uma verdadeira amostra do seu ‘ativismo’ pró-humanidade. Aquele que brincou de Deus, fabricando armas capazes de dizimar a raça humana, enlouquece, regredindo sua idade mental aos seis anos. “Com essa ameaça de destruição imediata, estamos à beira do desastre (...) Não consigo viver com prazos finais, então desisti de viver”, diz Boden enquanto faz um portrait do Jonh. Em uma correlação com o Dr. Strangelove (Reino Unido / EUA, 1964), de Stanley Kubrick, comprova-se que toda a comunidade cientifica envolvida na manutenção da guerra Socialismo x Capitalismo era uma parte dos verdadeiros loucos mundiais.
A mais contraditória imagem vem representada num garoto chamado Trent (Hari Rhodes), único estudante negro a ingressar numa universidade sulista (possivelmente a de Mississippi, um dos estados mais reacionários na atitude pró-supremacia americana) exclusiva para os brancos. Diante a execração diária, ele não suporta conviver num ambiente em que sua liberdade é medida pela cor da sua pele não pela sua capacidade ou condição humana. A reação a toda essa atmosfera inabitável o tormenta, então ele passa a crer que é o criador da KKK “General Forrest você anda dizendo que fundou a Klu Klux Klan. Eu sou o fundador, o grão mestre”, dizia enquanto segurava a camisa de John. Ele, então, aterroriza, maltrata os negros da instituição além de fazer campanhas que disseminam o racismo doentio dentro do hospício. “Sou a favor do americanismo puro. Supremacia branca! (…) Temos que jogar pedras e bombas, bombas negras para estrangeiros negros! (...) Queimem cada adorador de crioulos que existir! Chame-nos de KKK, nós vamos executar a matança africana!”. Fuller reproduzia através de Trent todo o discurso absurdo que durante muitos anos vinham sido reproduzido em atos e concordância de todas as pessoas que molestavam os negros (focando a atenção maior ao grupo extremista tão comentado no parágrafo, por representar – nos EUA - o ápice da intolerância). Em um suspiro de sobriedade, Trent relata os maus-tratos aos quais fora submetido. Repete a lei outorgada na quarta-feira, 30 de agosto de 1954, onde “A Suprema corte decreta o fim imediato da segregação nas escolas do país” sabendo que ela não era aplicada à realidade, então fala “para que as úlceras acabem, as escolas devem ser instruídas antes de abrirem as portas”.
O tema central do filme circunda na ambição de Johnny Barrett, um repórter do Daily Globe, obcecado pela fama e reconhecimento. Ele acreditava que a única maneira de fugir da mediocridade era conquistar o prêmio Pulitzer. Para alcançar este objetivo, Barrett arquiteta, juntamente com seu amigo psiquiatra Dr. Fong, o seu chefe Sr. Swanee e a sua namorada, a streaper Cathy (visivelmente contrária àquela armação), um plano insano de se infiltrar num hospício de modo a investigar e resolver um crime que as autoridades não puderam dar como encerrado. Johnny mentiu, corrompeu e finalmente conseguiu penetrar na clínica psiquiátrica. Ele já sabia exatamente quem eram as testemunhas e como enganar aqueles que poderiam lhe desmascarar. Por ironia, quanto mais próximo ele chegava da solução do crime, mais mentalmente perturbado ele se tornava. Na verdade Johnny nada mais era do que a personificação da grande maioria de cidadãos medianos e frustrados com a sua rotina cotidiana. O sonho de alcançar um prêmio, prestígio e, obviamente o dinheiro que lhe acarretaria status, é o caminho mais rápido e “fácil” de subir o degrau da “felicidade”. A partir daí, aparece a assertiva de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”. A finalidade: o prêmio. Os meios: a qualquer custo entrar no manicômio, saber o nome do assassino, sair gloriosamente do corredor do hospício para o corredor da fama. Porém o custo do prêmio foi mais alto que Barrett e seus ajudantes imaginaram. Sua insanidade agora é dona da sua mente, de modo irreversível.
“O homem não pode brincar com a mente, viver num sanatório, se submeter a tratamentos e não esperar conseqüências. Johnny é um esquizofrênico catatônico, o louco mudo que ganhará o Pulitzer.” fala o doutor Cristo à Cathy nos últimos minutos do filme.
Emilly Dias
Paixões que Alucinam (título original: Shock Corridor)
Filmado em 1963, dirigido, escrito e produzido por Samuel Fuller
Elenco:
Peter Breck como Johnny Barrett;
Constance Towers como Cathy;
Gene Evans como Dr. Boden;
James Best como Stuart;
Hari Rhodes como Trent;
Larry Tucker como Pagliacci;
Diretor de fotografia: Stanley Cortez;

A.S.C. Duração: 101 minutos. Cor: Preto e Branco e Colorido.
Adicionar comentário sobre o nome.

quinta-feira, outubro 19, 2006

O Beijo Nu.

“Uma vez, o beijo de um homem teve esse gosto. Ele foi internado num hospício. Senti aquele gosto desde a primeira vez que Grant me beijou. Foi o que chamamos de um beijo nu, a marca de um pervertido”.
Um beijo nu significa um beijo doente, mesmo que sincero, uma postura cuja aspiração é a mais pura realização de um ato sexual perverso. Analisando através dos diversos sinônimos que a palavra ‘nu’ possui (desnudo, despido, pelado) logicamente caberia a interpretação de que o beijo nu de Grant foi uma atitude em que ele revelou uma parte da sua essência, mesmo sem a intenção de fazê-lo. Kelly possivelmente usou este termo para designar a falha de caráter do ‘herói’ de Grantville. Ela metaforicamente dizia que Grant era um homem doente, um pervertido e que ela havia sentido essa essência podre dele desde o primeiro toque carnal que teve com o homem. Ela deveria saber, certamente, que ele não se tratava de alguém comum, visto que, dotada da profissão de prostituta, ela teve oportunidade de experimentar uma grande variedade de tipos masculinos, com todos os defeitos e personalidades.
Emilly Dias

The Naked Kiss

“Kelly is a hooker for business reasons. She loves children for personal reasons”, disse Fuller numa entrevista.

O filme aborda a vaidade mesclada à auto-estima, o sonho, o submundo da prostituição (sob sinônimos de venda de bombons e champagne ‘Angel Foam’), a pedofilia, o patriarcalismo (juntamente a todo tradicionalismo de pequenas cidades) e a contradição (expressa nas figuras de Kelly: a prostituta linda, porém dotada de conhecimentos da cultura musical (Moonlight Serenade) e literária (Goethe); Grant: milionário caridoso e pedófilo e Griff: a lei e o poder local totalmente arcaico e sem nenhuma noção de cultura ‘erudita’. “Você como tira deveria ler livros. Goethe, por exemplo. Ele disse que não há nada pior que a ignorância, e você provou que ele tem razão!” Dizia Kelly depois de ter sido insultada por Griff, que insinuou que ela era suja pelo fato da profissão que ela exerce).
A vaidade pode ser expressa em dois momentos de “plot point” do filme. Um deles acontece na primeira e mais memorável cena em que Kelly está raivosamente espancando um homem bêbado, dentro de um apartamento (futuramente descobrimos que ele era seu cafetão). O clima é reforçado pela tensa e frenética música de Jazz ao fundo. A fúria da personagem se torna mais intensa quando este homem, ao tentar se defender arranca-lhe a peruca, desnudando algo que incomoda Kelly: ela precisa ser bonita para exercer a sua profissão, seu ganha-pão. Depois da tamanha surra, sua vítima cai inconsciente e ela arranca a carteira do bolso dele, retirando apenas a quantia que lhe pertence. Aqui já aparece a primeira contradição da película: Kelly, prostituta, violenta, representação da escória social, honesta e virtuosa. A música muda quando ela se recompõe no espelho. Uma melodia melancólica expressa aquele momento de reconstituição da auto-estima da mulher explorada, devastada. Quando ela finalmente se enxerga bonita, ela volta à sala (no mesmo instante, a música de jazz), rasga uma foto sua, que estava pendurada numa das paredes da sala, e joga os pedaços no chão, junto aos dólares que antes estavam no bolso do homem desfalecido. O segundo momento da vaidade combinada à auto-estima acontece quando Kelly se olha no espelho, depois de uma noite com Griff e decide que a vida de prostituição é algo que ela não quer perpetuar. “Foi o olhar mais longo da minha vida. Eu vi uma maquinaria quebrada. Só notas, uma cama e uma garrafa pelo resto da minha vida”. Diz a Griff, no hospital ortopédico, quando anuncia que largou a sua antiga profissão.
O sonho acontece em três ocasiões. A primeira advém duma história que Kelly conta, aos pequenos enfermos, sobre uma espontânea e linda brincadeira no parque que a envolvia e também às crianças. Dessa maneira, ela dá uma fugaz esperança aos pequeninos de que eles estavam livres das muletas, camas e cadeiras de rodas. O outro momento, que representa o devaneio dos personagens, ocorre quando Kelly acredita que vai conseguir finalmente livrar-se do seu passado obscuro. Esta nova moldura de ser, com a qual ela se presenteia, sucede quando ela começa a cuidar das crianças na clínica ortopédica. Adicionado a isto ela alimenta expectativa de virar uma mulher digna, relacionando-se (esta relação se dá quando ela vai assistir as gravações de Grant em Veneza e a partir daí cria sua primeira aspiração de comungar a vida com aquele homem) e casando-se com Grant. A subseqüente ocasião fantasiosa, porém pouco explorada no filme, é o sonho da mulher que tem o seu amado recrutado para servir a guerra. Ela recebe, tempos depois, um telegrama anunciando a morte do seu namorado, as medalhas como forma de reconhecimento do trabalho prestado a nação e a espera de 20 anos para a realização da quimera de se casar com seu Charlie, coisa que jamais iria se concretizar.
A pedofilia se expressa no homem cujo nome “é sinônimo de caridade”. Grant, tataraneto do fundador da cidade onde Kelly se instalou, era o “solteirão mais cobiçado”, inclusive por ela. Quando, próximo à data de casamento, a personagem vai mostrar o vestido de noiva ao seu futuro marido, eis a revelação: aquele homem honesto, caridoso, a verdadeira corporificação do príncipe encantado era, na verdade um pedófilo. Kelly não suportou a nova descoberta e, chocada, mata Grant.
O patriarcalismo se expressa nas figuras de Grant e Griff. Grant é o mantenedor da cidade, fundador do hospital que dá empregos e dignidade aos cidadãos. É o homem mais respeitado da região. Griff (que além de patriarca carrega consigo as mais ardorosas características do tradicionalismo) é aquele que impõe a ordem. Ele é um policial e não quer ver a suposta paz da sua pequena cidade perturbada. Usa qualquer mecanismo para se livrar dos indesejáveis: Primeiro ele dá seu próprio dinheiro no intuito de se ver livre de um ‘vagabundo’: “Obrigada Griff, lhe pagarei de volta” – diz o vagabundo quando o policial lhe paga a passagem para ele sair de Grantville. “Faço isso porque seu irmão trabalhou comigo. Não quero ver aqui de novo”. Depois disso, ele segue cada passo de Kelly, de modo a evitar que os serviços da moça não se espalhassem pela cidade: “Não haverá depois. Esta cidade é limpa. Não vamos nos dar nada bem se invadir meu terreno”. Declara isso depois de passar uma noite com Kelly e estar saciado com a degustação do seu produto. Quando a mulher quer se regenerar, largando de vez o meretrício e começando um trabalho com crianças, ele fica de sentinela, esperando que ela dê um primeiro e único passo em falso.
A contradição é representada em muitos momentos do filme. Adicionado aos acontecimentos citados no primeiro parágrafo, existe ainda a cena mais representativa do paradoxo (da essência humana) na situação que envolve o assassinato de Grant. Abismada depois de desmascarar a doença do seu futuro esposo, tomada pela fúria após ser taxada de anormal, Kelly não hesita e acerta em Grant um certeiro golpe com o gancho do telefone. Depois da tragédia ocorrida, ela amarrota o vestido de noiva (símbolo da sua libertação e felicidade), que acabara de ser pronto, de volta na caixa e permanece sentada na cadeira, taciturna, entendendo que seus ideais de plenitude viviam apenas no plano da ilusão. Após todo o tempo de investigação e carceragem, Kelly, que era a inimiga mais odiada da cidade, se transforma na heroína mais adorada (este intervalo é marcado pela grande hipocrisia que as pessoas carregam dentro de si).
Emilly Dias
Ficha Técnica:
Título original: The Naked Kiss
Direção: Samuel Fuller Roteiro: Samuel Fuller
Elenco: Constance Towers (Kelly) Anthony Eisley (Griff), Michael Dante (Grant).
Gêneros: Drama, Policial, Romance
País/Ano de Produção: Estados Unidos / 1964
Duração: 91minutos

quinta-feira, outubro 12, 2006

Les Yeux sans Visage


Para compreender a anatomia de “Olhos sem Rosto” (Les Yeux sans Visage, França/Itália, 1959), devo procurar cada célula componente deste corpo narrativo. Para começar, cito a maneira audaciosa e brilhante que George Franju encontrou para contar uma história. Ele resolveu resgatar das covas os mais célebres defuntos artísticos, uma vez que, em plena década de 60, ele decide utilizar organicamente, em seu primeiro longa-metragem, linguagens já tidas como ultrapassadas, por isso abafadas pelo avanço. O cineasta (fundador da Cinemateca Francesa, um dos templos mais importantes da história do cinema) ao fazer “Olhos sem Rosto”, trazia à tona o surrealismo de Luis Buñuel, o expressionismo alemão (filmes mudos cujo apogeu se deu na década de 20), o horror e deformidades do teatro Grand Guignol, aspectos dos filmes de horror da Universal Pictures (a exemplo de Frankenstein [EUA,1931, com Boris Karloff]) e o realismo fantástico.
As inúmeras características (apresentadas acima, por facções) que foram empregadas apuradamente nesta película, dão a ela uma identidade pouco comum. Acompanhando as lentas e envolventes cenas e seqüências do filme temos a forte impressão de estarmos emersos num ambiente onírico angustiante, onde uma das principais personagens aparece flutuante e amargurada, como um fantasma errante. Daí, seguramente, eu tiro o exemplo do que seria o surrealismo (no cinema), vestindo uma roupagem de pesadelo.
Os contrastes que transcendem o preto e branco e se completam com as sombras sutis projetadas como figuras bruxuleantes; a atmosfera densa dos cômodos da casa, do porão e da floresta que circunda a mansão do Dr. Génessier (Pierre Brasseur), além do desolamento e solidão da única filha, Christiane (Edith Scob), do famoso médico, são os elementos que trazem à memória a configuração do expressionismo alemão. O responsável por este efeito é o polonês Eugen Schüfftan, que através da sua distinta direção de fotografia, explorou o ambiente, humor e contexto nos quais estavam vivendo os personagens, para enaltecer-lhes o caráter melancólico.
Numa palestra cedida pelo Dr. Génessier (em uma das primeiras cenas da película), ele apresenta aos ouvintes a notícia de que possui um estudo que, se concretizado, seria capaz de rejuvenescer ou impelir a velhice da feição das pessoas. Neste momento o médico faz um prefácio dum futuro acontecimento do filme: a sua prática secreta de enxertos. Paulatinamente, Franju surpreende os espectadores quando transfere a figura de um ilustre, rico e famoso homem, um exemplo perfeito de cidadão, para a de um pai lunático e obsessivo, um médico insano e totalmente escravo da sua vaidade intelectual. Aqui reside o cientista que, para tentar transformar o que agora é deformidade na sua ‘antiga’ filha, começa uma coleta e chacina de lindas e jovens francesas de olhos azuis e peles claras, características semelhantes às da antiga Christiane, para tirar-lhe a pele dos rostos. Ele aprisiona a sua filha, que é o seu Frankenstein, com promessas e experimentos, assim como aos cachorros que ficam agrupados no porão, próximo ao laboratório onde ele praticava os transplantes faciais.
A partir daí, surgiram em mim questionamentos inquietantes. Através duma análise do personagem central, dotado de uma grande complexidade emocional, pergunto até onde a devoção à causa da sua filha era verdadeira. Será que ele não a usava, assim como às todas outras garotas - por ele friamente assassinadas depois de usadas nos experimentos -, como cobaia humana para testar a eficácia de seus estudos? Um homem capaz de roubar a beleza, juventude e vitalidade de tantas moças não seria plenamente apto a valer-se de qualquer pessoa em prol de um bem maior que é o ‘avanço da ciência’? Neste aspecto, recorro a Samuel Fuller, que brilhantemente abordou em Shock Corridor (EUA, 1963) a cegueira dos cientistas sequiosos pelos progressos tecnológicos, que não levavam em consideração os meios, mas os fins. Apontou esses homens, como portadores de uma psicose virulenta, que acredito se emprega perfeitamente ao Dr. Génessier.
De volta às questões, será mesmo que o médico deu a sentença de morte social à sua filha com único propósito de, pacificamente, transplantar-lhe o rosto? Ou será que ele parte do pressuposto de que o rosto ausente é mais incômodo do que a ausência da menina, declarando subliminarmente que a prefere ‘antes morta, que deformada’? Este é o gancho para a apresentação dos exemplos do Grand Guignol, onde pessoas com deformidades físicas eram tidas como peças de exibição e terror nos palcos deste teatro, na primeira metade do século XX, em Paris. As notáveis cenas nas quais há a exemplificação da prática do Grand Guignol são: a cena turva na qual Christiane retira a sua máscara de porcelana, deixando a mostra seu rosto desfigurado; e a longa seqüência, sem cortes, da operação facial, a qual mostra detalhadamente a retirada cirúrgica do rosto de uma vítima.
Pedindo permissão para usar as características deste teatro de forma psicológica, eu diria que a neutralidade com que Dr. Génessier encara um cemitério a noite, portanto em seu colo um corpo recém-morto para enterrá-lo, como se fosse um saco cheio de entulho, pode ser considerado como uma deformidade comportamental. O realismo fantástico somado ao Guignol aborda, entre outras coisas, a zoomorfização ou coisificação do ser humano, quando mostra o médico usando cobaias vivas (tanto as moças parisienses, dentre elas, a sua própria filha, quanto cachorros que ficam trancafiados em pequenas jaulas) para experimentos científicos. As vítimas são logo descartadas (a exceção de Christiane, por motivos óbvios) na corrente do rio, em saltos da janela ou através de uma injeção letal quando constatado que os experimentos foram falhos.
Em “Olhos sem rosto” ainda se configuram duas linguagens cinematográficas, bem comuns em Hollywood, que são o thriller e o terror. O filme se encontra emerso numa trama policial, cujo objetivo é descobrir o desaparecimento de moças parisienses que possuem um mesmo perfil físico. Será que um serial killer está atemorizando as redondezas de Paris? Ironicamente, o único insuspeito era o verdadeiro assassino, o homem que a força policial da cidade procurava mas que, além de não o encontrar quase aumentava a lista de vítimas do frio executor. Franju busca a neutralidade da realidade, prescindindo dos protótipos ou esquemas-padrões de personagens para adicionar o horror na sua película. O diretor acredita que o terror está na vida cotidiana e é a partir do mistério do real que ele, ‘o cineasta demoníaco’(segundo Godard) busca a inspiração para o seu terror. “Em Les Yeux Sans Visage, como na obra de Kubrick, o assustador nunca surge de um saber que ainda não é conhecido, mas daquilo que é por demais conhecido, de um conhecimento a mais que ocasiona desastres” (Ruy Gardnier).
O realismo fantástico também se apresenta na exposição de temas muito avançados para a época em que vivia George Franju. O cineasta fala da ditadura da beleza, ou seja, fala (nas entrelinhas) de como as pessoas desejam alcançar o padrão socialmente fixado do belo. Premedita o quadro de atitude estética dos tempos hodiernos: a beleza e juventude a qualquer custo, o que, em outras palavras, é a submissão em larga escala às cirurgias plásticas. George também aponta o incômodo que o feio causa (este ponto já fora discutido no parágrafo sobre o Guignol). Numa dimensão ainda mais enraizada das ações brutas do homem, Franju usa a cena final do seu filme para dizer que, nos dias vividos, a liberdade só pode ser conquistada por intermédio da morte e da loucura, aqui (de acordo com a minha interpretação) é uma referência às guerras e seus efeitos político-sociais. Trazendo para a linguagem do filme, isso equivale a dizer que Christiane, para tornar-se livre, precisava eliminar os seus opressores, uma vez que ela é carcereira de si, do seu pai e suas experiências, da sua vaidade, da sua liberdade e, sobretudo, da máscara de porcelana. Tomada pelo desejo sufocado, ela liberta a todas as cobaias (inclusive a si mesmo) e, depois de ‘matar’os assassinos, dança na noite celebrando o levantar de asas tardio.
Além das características do Realismo Fantástico (citados durante o texto) as premeditações feitas pelo diretor, o casamento dos mais diferentes movimentos cinematográficos – tanto em relação a linguagem, quanto a época, narrativa, contextos e abordagens –europeus e norte-americanos, a abordagem da universalidade humana onde a vaidade (física, emotiva, de status e profissional) é o assunto em pauta e, por fim, o maduro trabalho de câmera fazem com que “Olhos sem rosto” abrace para si todos os sinônimos que fantástico (arrebatador, delirante, excelente, extraordinário, magnífico, prodigioso e maravilhoso) possui.
Emilly Dias
Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage, França/Itália, 1959)
Direção: Georges Franju
Elenco: Pierre Brasseur, Alida Valli, Juliette Mayniel, Edith Scob
Duração: 90 minutos

segunda-feira, outubro 09, 2006

Vejam e votem!

Eleições presidenciais findadas, hora da eleição do vídeo feito para o 1º Festival de Vídeo da TVE.

Venho aqui, também dar os devidos agradecimentos mais que especiais
a Carolina Marques, Fernanda Bezerra, Mariana Machado, Lívia Cunha, Amina Alakija e Cristiana Ferreira, pois sem as msmas não haveria possibilidade de existir o Sem Metamorfose!

Aqui está o link para a votação do vídeo.
http://www.irdeb.ba.gov.br/festivaldevideo/capa.htm

Por favor, votem!

O vídeo no Youtube para assistir:
http://www.youtube.com/watch?v=v-MzhI-ZcCQ

A definição da magia.



Você?

Uma pulsação.
Um aprendizado.
Uma palavra impronunciável.
Boca cheia dum conteúdo audível, significante mesmo que disperso com tantas e tamanhas passadas e passos traseuntes.
Uma roda-gigante, o raio de um tímido despertar dum belíssimo dia.
Um cheiro de sorriso.
Um amanhã dormioco.
Um objetivo alucinado.
Um enorme ruborizar.
Tantos em um só e um só em quase tudo.
Tantos sós que compõe seu eu, que não é meu nem de ninguém.
Um vôo livre do pássaro que circunda o candombá.
A uncaria tomentosa que engancha o olhar, cabelos e sentimento de simpatia.
Meu nada recheado de tudo que poderia existir.
Minha respiração matutina.
Meu despertar euforicamente controlado.
O filete de lua acompanhada da Eleonor Rigby.
Meu sexto Beatle.
E todo o resto.

...

31/07/06