quinta-feira, novembro 17, 2005

Contos nada proíbidos


O filme “Contos Proibidos do Marquês de Sade” (Quills, título original) produzido nos EUA, ano 2000, estrelado por Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Micheal Cane, dirigido por Philip Kauffmam – passa-se no século XVIII, em plena Revolução Francesa, onde há uma grande inquietude e temas sobre moralidade, ética, direitos humanos são questionados. Como o próprio título diz, a história tem como foco um dos escritores mais obscenos e crus da história. Em 124 minutos, dá-se para sentir asco, admiração, vontade, surpresa e choque. O realismo e o naturalismo (movimentos artísticos e literários bem a frente do seu tempo) estão pincelados em cada take do longa, cujo ambiente se deu em, um local muito qualificado para as transcendências do Marquês, um hospício – corporificação da idéias, anarquistas, que povoam as mentes insanas: “Meu texto sendo filtrado pelas cabeças dos loucos... Talvez eles o aperfeiçoem” diz Sade numa das desesperadas tentativas de reproduzir os seus desvarios.
Geoffrey incorpora verossimilmente a figura irônica e sarcástica do marquês subversor. Desejos, apetite e toda simbologia voltada para a concupiscência são muito bem expressos em cada palavra, gestos e “balangandãs” fálicos colecionadas por ele. O excêntrico Donatien Alphonse Francois de Sade, ao escrever seus contos abordava a dicotomia mais clichê do ser humano (o Bem e o Mal), contudo o fazia de maneira inovadora, já que acreditava que estas duas características residem no homem de maneira proporcional (mesmo que, momentaneamente, um se sobrepusesse ao outro). Este ponto de vista descaracteriza todo o pensamento maniqueísta declamado e defendido hegemonicamente pela Igreja a mais de dezesseis séculos. A ruptura com o romântico, a desmistificação das instituições contemporâneas é retratada de maneira tão crítica, que encanta aqueles que procuram por uma visão menos idealizada da história e escritores tradicionais.
Dentre imundices, cenas bizarras, Sade sorria de modo vanguardista ao fazer apologia ao ateísmo, coisa que lhe rendeu vinte e sete anos de prisão (os anos mais produtivos de sua vida, tendo escrito Justine e outros tantos). O escritor, ao expor no papel suas perversas fantasias, segurava um espelho o qual refletia a humanidade na sua mais obscura faceta: a própria condição humana: “Sade aponta para nossa nudez, sem meios tons. Sade é nojento. Sade é sublime. A ambigüidade essencial da consciência – é isso que o Marquês de Sade faz aflorar. Lendo ou vendo-o em cena, o que se vê é o nosso lado sombrio”, escreveu João Silvério Trevisan
[1]. Ele golpeia os [falsos] moralismos quando aborda, cheio de malícia, assuntos socialmente abafados tais quais: sodomia, homossexualismo, perversão, sadismo – esta palavra deriva-se do seu próprio nome Sade - e masoquismo. O ser REAL é aquele que protagoniza o filme, sem idealização ou romantismo (abrindo-se exceção para a personagem Madeleine).
O roteiro de Doug Wrigth, os olhos e perspicácia de Kauffman conseguem produzir gloriosamente os últimos dez anos revolucionários e desesperados do Marquês. O figurino, os atores, o cenário, a linguagem todos estes aspectos somados representam fotograficamente a pompa da época das guilhotinas. Nem fisicamente silenciado Sade permitiu que sua produção cessasse. “Engolindo” as tradições, seu corpo morre com um crucifixo preso à faringe, porém suas palavras ainda ecoam na “moral” de todos os sádicos hodiernos, incomodando muitos, inclusive aqueles que se intitulam progressistas.


[1] João Silvério Trevisan faz parte da Companhia de Teatro “Os Satyros” (SP)
Emilly Dias


sexta-feira, novembro 04, 2005

Merda















Caetano Veloso
Composição: Caetano Veloso

Nem a loucura do amor,
da maconha,
do pó,
do tabaco e do álcool
Vale aloucura do ator
quando abre-se em flor sob as luzes no palco
Bastidores, camarins, coxias e cortinas
São outras tantas pupilas, pálpebras e retinas
Nem uma doce oração, nem sermão,
nem comício à direita ou à esquerda
Fala mais ao coração do que a voz de um colega
que sussurra "merda"
Noite de estréia, tensão, medo, deslumbramento, feitiço e magia
Tudo é uma grande explosão
mas parece que não quando é o segundo dia
Já se disse não foi uma vez, nem três, nem quatro
Não há gente como a gente, gente de teatro
Gente que sabe fazer a beleza vencer pra além se toda perda
Gente que pôde inverter para sempre o sentido da palavra "merda"
Merda, merda pra você
Desejo merda
Merda pra você também
Diga merda e tudo bem
Merda toda noite e sempre a merda

O Poeta-operário

Grita-se ao poeta:
"Queria te ver numa fábrica!
O que? Versos? Pura bobagem".
Talvez ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursosque façam mover-se a mó!

Maiakovski